De acordo com os dados mais recentes da CNDL e do SPC Brasil, mais de 68 milhões de brasileiros estão com contas em atraso
O Brasil enfrenta uma crise silenciosa, porém devastadora: a inadimplência e o endividamento das famílias atingem níveis recordes. De acordo com os dados mais recentes da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) e do SPC Brasil, mais de 68 milhões de brasileiros estão com contas em atraso, número que representa aproximadamente 40% da população adulta. Segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC), em fevereiro de 2025, 78,5% das famílias brasileiras estavam endividadas.
Embora fatores macroeconômicos como inflação, juros elevados e informalidade no marcado de trabalho contribuam para esse cenário, há causas estruturais que exigem uma resposta urgente do poder público — especialmente no campo da educação financeira.
Fatores que explicam a inadimplência e o endividamento das famílias no Brasil
Pesquisa realizada pela CNDL/SPC Brasil, em janeiro de 2025, entrevistou consumidores de todas as regiões do país e identificou que imprevistos com saúde, manutenção da casa e descontrole orçamentário são as principais causas da inadimplência no país. Com base nessa pesquisa e em outros estudos sobre o tema, é possível listar os 5 principais fatores que explicam esse grave problema social:
1. Baixa educação financeira: a Pesquisa de Educação Financeira da ANBIMA (2023) revelou que 43% dos brasileiros não controlam seu orçamento pessoal, e 6 em cada 10 não conseguem poupar. Conceitos como juros compostos, planejamento de longo prazo e consumo consciente ainda são distantes da maioria da população. A pesquisa CNDL / SPC Brasil mostra que o consumo sem planejamento foi uma realidade para muitos entrevistados, quase metade (47%) admitiu ter feito compras sabendo que o pagamento seria difícil, enquanto 39% adquiriram produtos ou serviços sem avaliar se conseguiriam quitá-los. A pesquisa mostra ainda que 29% afirmaram ter comprado algo conscientes de que não deveriam ter condições de pagar, evidenciando a falta de organização do orçamento na inadimplência das famílias.
2. Acesso a crédito: o crédito no Brasil é amplamente ofertado, especialmente via cartão de crédito e crédito consignado. Programas recentes do Governo Federal ampliaram ainda mais o acesso ao crédito consignado para a população, o que deve agravar os índices de inadimplência e endividamento das famílias nos próximos meses. Importante destacar que conceder crédito não é algo negativo, o problema é a contratação sem critério ou entendimento dos riscos.
3. Cultura de consumo e pressão social: a valorização do consumo imediato como símbolo de sucesso social, somada à influência de redes sociais, campanhas publicitárias e utilização de inteligência artificial nos marketplaces impulsiona decisões financeiras impulsivas e irresponsáveis. A pesquisa CNDL / SPC Brasil revela ainda que muitas decisões financeiras não são individuais e influenciam diretamente a dinâmica dos relacionamentos. Quase a metade (45%) concordam que se sentem pressionados a gastar mais quando estão com a família e amigos. Além disso, 44% dizem que sua reputação está sendo afetada pelas dívidas com o pagamento em atraso.
4. Falta de reserva de emergência: com cerca de 40% da população ocupada na informalidade (IBGE, 2025), muitas famílias vivem com orçamento instável, sem margem para imprevistos, o que agrava o risco de inadimplência. O Instituto Datafolha divulgou uma pesquisa em 2024 mostrando que 67% dos brasileiros não possuem nenhuma reserva financeira, ou seja, praticamente 2/3 da população.
5. Uso limitado de serviços financeiros formais: apesar do avanço da bancarização dos brasileiros, a alta informalidade no mercado de trabalho, aliada a exigências das instituições financeiras, faz com que muitas pessoas ainda recorram ao crédito informal oferecido por agiotas. Esse tipo de operação ilegal exige menos garantias, no entanto, envolve taxas de juros elevadas, o que reforça ciclos de endividamento nocivos.
Propostas de políticas públicas
Diante do cenário alarmante de inadimplência e endividamento das famílias brasileiras, é urgente repensar o papel do Estado na promoção da saúde financeira da população. Embora iniciativas pontuais tenham sido implementadas nos últimos anos, o Brasil ainda carece de uma estratégia nacional estruturada e permanente que enfrente as causas do problema e promova a autonomia financeira dos cidadãos, isso deve ser feito por meio de políticas públicas.
Políticas públicas podem ser compreendidas como o conjunto de decisões e ações do Estado voltadas à solução de problemas coletivos, à promoção do bem-estar social e à garantia de direitos. Segundo Thomas R. Dye, renomado cientista político norte-americano, política pública é “tudo aquilo que os governos escolhem fazer ou não fazer” (Understanding Public Policy, 2013). Esse conceito abrange tanto programas, leis e regulamentos quanto omissões deliberadas do poder público. No contexto brasileiro, a formulação de políticas públicas envolve múltiplos atores – governos, parlamento, sociedade civil, setor privado – e se desdobra em etapas como diagnóstico, planejamento, implementação, monitoramento e avaliação. Trata-se, portanto, de um processo dinâmico e estratégico, fundamental para o enfrentamento de desafios estruturais como o endividamento das famílias, a exclusão financeira e a desigualdade de oportunidades.
A seguir, algumas propostas de políticas públicas baseadas em evidências acadêmicas e em experiências bem-sucedidas adotadas por outros países, com potencial para transformar o atual panorama socioeconômico e promover uma cultura de responsabilidade financeira sustentável.
1. Educação financeira obrigatória nas escolas
- Referência: OCDE – PISA Financial Literacy Framework.
- Proposta: Integrar temas como orçamento, crédito e poupança ao currículo da educação básica nacional.
- Impacto esperado: Formação de gerações mais conscientes financeiramente. Estudos mostram que países como Estônia e Canadá reduziram o endividamento estrutural ao incluir educação financeira no ensino básico.
2. Programas de capacitação financeira para adultos
- Referência: Banco Mundial – Global Financial Literacy Excellence Center.
- Proposta: Criar programas gratuitos (em parceria com SESC, SENAC, SENAI e instituições financeiras) voltados à população economicamente ativa e aposentados.
- Impacto esperado: Redução da inadimplência, melhoria na tomada de decisões e aumento da poupança.
3. Expansão e permanência de programas de renegociação de dívidas
- Referência: Programa “Desenrola Brasil” (Ministério da Fazenda, 2023/2025) e feirões de renegociação de dívidas (SPC Brasil, Serasa, etc).
- Proposta: Tornar permanente a política de renegociação com estímulo à mediação, descontos e estímulo ao uso de canais digitais.
- Impacto esperado: Reinserção de milhões de consumidores ao mercado formal e estímulo à regularização de crédito.
4. Regulação do crédito de alto risco com exigência educativa
- Referência: Consumer Credit Act (Reino Unido).
- Proposta: Exigir, por regulamentação do Banco Central, que contratos de crédito consignado ou rotativo sejam acompanhados de um checklist educativo e material de esclarecimento.
- Impacto esperado: Redução da contratação imprudente de crédito e proteção ao consumidor vulnerável.
5. Criação de uma plataforma nacional de orientação financeira
- Referência: “Money Advice Service” (Reino Unido) e “CreditSmart” (Austrália).
- Proposta: Desenvolver um portal público com diagnóstico financeiro, simulações de crédito e orientações personalizadas.
- Impacto esperado: Aumento da transparência, do controle financeiro individual e incentivo à formação de histórico de crédito positivo.
6. Estímulo à oferta de produtos financeiros acessíveis
- Referência: Banco Mundial – Estratégias de Inclusão Financeira.
- Proposta: Apoiar, com regulação e incentivo, fintechs e cooperativas que ofereçam microcrédito, seguros e contas digitais sem tarifas abusivas.
- Impacto esperado: Inclusão de milhões de brasileiros ao sistema financeiro formal e redução da dependência de crédito informal.
Diante das causas e das propostas para superação da alta inadimplência e endividamento das famílias brasileiras, fica evidente que este problema não será superado apenas com ajustes econômicos. É necessário um esforço estrutural, baseado em políticas públicas contínuas, educativas e inclusivas. A educação financeira deve ser vista como um direito social e uma ferramenta de cidadania. E a responsabilidade de buscar soluções precisa ser compartilhada entre o poder público, sociedade civil organizada e setor empresarial, só assim será possível promover autonomia, segurança e desenvolvimento sustentável no país.
Fonte: Varejo S.A