Artigo: Recuperação do centro do Recife, uma evolução em mosaico

28 de fevereiro de 2024

Por Francisco Cunha

Há mais de 20 anos que estou envolvido, na condição de consultor da CDL Recife, no processo de recuperação do centro da cidade.

Ao longo deste tempo, foram várias as tentativas envolvendo os lojistas, o setor público municipal, diversas entidades públicas e privadas, dentre as quais a Universidade Federal de Pernambuco e, até, a colaboração da Embaixada dos Países Baixos e da prefeitura de Amsterdam, num workshop internacional sobre a Ilha de Antônio Vaz (que abriga os bairros de Santo Antônio, São José, Joana Bezerra e Cabanga).

Apesar disso, todavia, a sensação com a qual fico, depois de passado tanto tempo, é a de que, talvez, tenhamos, no máximo, conseguido reduzir um pouco o ritmo da decadência no que diz respeito aos bairros de Santo Antônio e São José, já que, no bairro do Recife, o que se poderia chamar de círculo virtuoso foi, felizmente, iniciado depois de praticamente 30 anos de tentativas, idas e vindas, erros e acertos.

Exemplos deste círculo virtuoso no bairro do Recife são: a instalação do Porto Digital e de várias empresas embarcadas instaladas no bairro; a Praça do Marco Zero reformulada (projeto artístico do pintor Cícero Dias intitulado “Eu vi o mundo… e ele começava no Recife”) e a implantação do Parque das Esculturas no molhe em frente de autoria de Francisco Brennand; a construção da Central de Artesanato e do Cais do Sertão com seus auditórios e o restaurante no rooftop; a instalação do Paço do Frevo; a implantação da Caixa Cultural; a restauração da Igreja do Pilar; a reforma dos armazéns no projeto Porto Novo; a construção do novo Terminal de Passageiros; a pedestrianização da Avenida Rio Branco (e sua transformação no Boulevard Rio Branco); a dinamização do uso dos armazéns do Cais do Apolo, transformados em prédios de uso comercial; a retomada do projeto habitacional da Comunidade do Pilar; o retrofit do prédio do Moinho Recife, inclusive com a inauguração do restaurante Moendo na Lage no seu rooftop; e, até, a construção do novo Hotel Marina em Santa Rita que, mesmo geograficamente fora do bairro, pode ser entendido como estando em sua órbita de influência. Sem falar, claro, na animação cultural que torna o bairro dinâmico e movimentado como é o caso dos eventos de época como o Natal, o Carnaval e o São João, além da centralidade que ocupa todos os domingos quando se torna o ponto de convergência das ciclovias de lazer na cidade e sedia o projeto Recife Antigo de Coração.

Com isso tudo, felizmente, este lado do centro da cidade já entrou em processo irreversível de recuperação. O problema está do outro lado da ponte, na Ilha de Antônio Vaz, em especial em Santo Antônio e São José além parte da Boa Vista, sobretudo a sua borda fluvial (os quarteirões que vão da margem do Capibaribe até o eixo da Rua do Hospício que se prolonga pela Cruz Cabugá até Santo Amaro). Neste perímetro, a decadência é brutal com os seguintes exemplos tremendos: a degradação das Avenidas Guararapes e Dantas Barreto; a lenta agonia da Rua da Imperatriz que já começa a contaminar, inclusive, a Rua Nova; o estado de “detonação” da Praça da Independência, inclusive com o injustificável estágio de ruinas em que se encontra o antigo prédio do Diário de Pernambuco que, inclusive, dá nome à praça (“Pracinha do Diário”); o descontrole urbanístico que está na raiz da enorme sensação de insegurança manifestada em todas as pesquisas de opinião, com toda certeza agravada pela proliferação descontrolada da população em situação de rua, sensivelmente ampliada no período pós-pandemia.

O que há de novo em relação a este quadro, felizmente, é coragem do prefeito João Campos de ter criado o programa Recentro e o Gabinete do Centro, inaugurando uma, nunca antes vista na história do Recife, gestão territorial “transversal” às demais secretarias verticalizadas (Segurança, Infraestrutura, Saúde, Educação etc.) e de ter colocado como chefe desse gabinete a competente Ana Paula Vilaça. Depois de dois anos de atuação deste novo esquema de gestão, algumas “acupunturas” urbanas realizadas já começam a surtir efeito como, por exemplo: o urbanismo tático da Rua da Palma, com sensível ampliação da caminhabilidade da área; a firme parceria com o setor lojista materializada pela atuação coordenadora da CDL Recife; o desenvolvimento do aplicativo do Corredor do Comércio com o cadastramento que permite a consulta pelos clientes de todos os estabelecimentos comerciais da área; a realização de eventos mensais de animação da Avenida Guararapes (o “Viva Guararapes”); o início da reforma do Mercado de São José; a contratação do BNDES para estudar uma solução sistêmica para o destravamento de um desenvolvimento imobiliário que permita dar uso produtivo ao enorme estoque predial ocioso da Guararapes e arredores; a reurbanização de vários trechos do cais da Rua da Aurora entre as pontes Princesa Isabel e do Limoeiro; o início da restauração da Praça Maciel Pinheiro; os estudos para implantação de um batalhão da Guarda Municipal exclusivo, para o Centro da Cidade; a implantação do primeiro trecho da Rota Histórico-Cultural, com pioneira sinalização do roteiro; o início da restauração do Camelódromo no final da Dantas Barreto, a construção do centro de convenções anexo ao Hotel Mariana em Santa Rita; a recuperação do Mercado da Boa Vista; a elaboração, sob a coordenação da Aries – Agência Recife para Inovação e Estratégia, do primeiro plano estratégico de longo prazo para o centro do Recife; e, até, uma iniciativas particulares aparentemente isoladas como é o caso da inauguração da surpreendente Livraria do Jardim, uma espécie de Livro 7 do Século 21, com um enorme jardim acoplado, entre as Ruas Manoel Borba e Giriquiti, próxima ao afortunadamente sobrevivente Hotel Central.

A essas “acupunturas” iniciadas na atual gestão juntam-se outras realizadas na gestão anterior que se habilitam para a integração sinérgica com elas: revitalização da Avenida Conde da Boa Vista, prioritariamente voltada para os pedestres e os usuários de transporte público; a restauração e o funcionamento regular do Teatro do Parque; restauração pedestrianizada da Rua Velha, Pátio de Santa Cruz e arredores; a restauração das igrejas-ícones do Barroco nacional que são a Matriz de Santo Antônio, a Concatedral de São Pedro dos Clérigos, a Conceição do Militares na Rua Nova, considerada pelo consagrado crítico francês, Germain Bazin, a “Capela Sistina do Rococó”; a restauração da igreja Matriz de São José; a reurbanização do entorno do Mercado de São José.

A nossa esperança, torcida e intensa atuação colaborativa é para que essas iniciativas que parecem isoladas em breve possam configurar também o início evidente de um círculo virtuoso para a “banda de cá” (Santo Antônio, São José e o trecho fluvial da Boa Vista) em moldes semelhantes àquele instalado na “banda de lá” (Bairro do Recife). O que parece estar se dando na “banda de cá” é o que a antropologia paleontológica chama de “evolução em mosaico”, ou seja, eventos aparentemente desconexos à espera de uma “faísca” para se articularem num movimento benigno de evolução restaurativa irreversível de modo a que, quando o Recife completar 500 anos em 2037, na condição de primeira capital brasileira a fazê-lo, possamos ter um centro expandido da cidade novamente de classe mundial, restaurado, vivo, dinâmico. Como todos os recifenses almejamos e merecemos.

Afinal, enquanto Walt Disney precisou inventar a Disneylândia, uma cidade da fantasia, do zero para lançá-la como centro de atrações para o mundo, nós “apenas” precisamos restaurar a nossa, sem ter que inventar nada pois cinco séculos já fizeram isso por nós. Vamos lá! Que a recuperação “em mosaico” se efetive o mais rápido possível porque só temos 13 anos para projetar o Recife como a maior centro histórico-cultural-turístico em linha reta do planeta.

Fonte: Revista Algo Mais